ENTREVISTA - JÚLIO GROUPA
*Professor Doutor do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Na sua opinião, está aumentando a violência dentro das escolas nos últimos tempos?
Aquino: Dizer que não, é ir contra as evidências concretas. Dizer que sim é aderir imediatamente a essas evidências. É uma pergunta complicada porque eu tenderia a responder 'sim' e 'não'!
'Sim' do ponto de vista da visibilidade. Está aumentando a visibilidade dessas ocorrências violentas em escolas.
'Não' porque elas sempre existiram, de uma maneira ou de outra, e sempre foram administradas, de uma maneira ou de outra.
A questão é que hoje não acreditamos mais que essas questões possam ser administradas no interior da escola. Por isso essa explosão na mídia.
Você acha então que a violência é um fenômeno de mídia?
Vou levantar uma hipótese absolutamente arriscada e temerária: os surtos de violência escolar aparecem, em geral, em meados do primeiro semestre que, do ponto de vista das notícias, é um tempo 'morno'.
É muito curioso. Esse tema sempre volta a ser comentado em abril, maio, junho. Nos últimos tempos, tenho sido convidado a me posicionar com relação a isso.
Ou só acontecem conflitos violentos nas escolas em meados do primeiro semestre ou é quando esse tema ganha visibilidade na mídia. Paradoxalmente é um tempo morno na mídia.
A violência escolar parece que "apimenta", vende bem.
Se por um lado há sensacionalismo e uma irresponsabilidade dessa divulgação do pânico, por outro, é um sintoma social interessante de que "violência pode em qualquer lugar, menos na escola!".
Esse horror social em relação à violência nas escolas é um termômetro que mostra que "pode ter violência em todos os outros lugares - e nós vivemos em uma das sociedades mais truculentas do planeta -, mas na escola, não pode!"
Em se tratando da violência, a escola tornou-se uma espécie de lugar 'sagrado'?
De fato é um espaço sagrado. Sabemos que a escola é a ante-sala da democracia. Sem escola não tem democracia que se sustente.
Isso é uma coisa que todas as classes sociais sabem de uma maneira ou de outra: escola é passaporte para a cidadania, passaporte para uma vida digna.
Não tem saída sem escola. É por isso que a escola, de uma maneira ou de outra, é o lugar ainda onde há a maior esperança civil.
Todo mundo gosta de estar na escola, inclusive as crianças e os jovens. Eles adoram ir para a escola. Detestam é ir para a sala de aula. 99% das crianças e jovens adoram estar na escola. É um lugar que, de uma forma ou de outra, eles têm o espaço garantido.
O Estado só comparece na vida do cidadão de duas maneiras: escola ou polícia.
O direito a freqüentar escolas está garantido. Atendemos a quase toda população escolar. O problema é que garantimos o direito a freqüentar a escola, mas não ainda o direito à educação. Isso está em processo.
Você acha que a escola, hoje, pode administrar a questão da violência?
Não só pode como deve. As questões escolares são questões de educadores. O dia que abandonarmos os dilemas escolares em favor da polícia, do médico, do psicólogo, do advogado, a gente derrocou com isso a idéia da educação.
Porque onde houver educadores de fato, não precisa ter polícia, nem médico, nem psicólogo. Essa é uma idéia preciosa. A gente sempre acredita que a redenção da escola vem de fora, nunca de dentro.
A solução, então, passa pelo papel do professor?
A solução da questão da violência na vida, e não só nas escolas, reside em uma única coisa: no conhecimento, na possibilidade de as pessoas terem uma vida mediada pela experiência de nossos antepassados - e isso se chama conhecimento.
Se a escola não é o lugar do conhecimento, qual é este lugar?
Não só a questão da violência mas também como todas as questões inquietantes do mundo contemporâneo.
Vamos pegar a questão do uso e abuso de drogas ilícitas. Isso aponta para a escola. Vamos pegar os cuidados em relação ao sexo. Isso precisa ser ensinado. Aponta para a escola.
A questão da ecologia, do cuidado com o mundo, para que exista mundo para as próximas gerações. Isso aponta para escola. Isso que é o que se chama de temas transversais.
Esses temas devem e podem ser problematizados: a cultura da paz, do gosto pelo convívio, que é uma das premissas da idéia de democracia.
Aqui cabe uma ressalva: isso não passa pela escola. Isso é matéria de trabalho escolar.
A gente tem de fazer isso pela via do conhecimento. Colocar a matemática a serviço disso. Nossa tarefa fundamental é colocar a matemática, ciências, artes, humanidades a serviço disso.
Temos de ensinar as pessoas a serem melhores.
Se você não acreditar que a escola pode tornar as pessoas melhores, não seja educador. Pois, isso tudo está encarnado na figura do educador. Escolas são os seus profissionais. Ponto final.
E quando não há condições estruturais, como salas devidamente aparelhadas, segurança na escola, por exemplo? O professor tem condições de superar a falta dessas condições?
Um bom projeto pedagógico arregimenta o grupo em torno de um trabalho interessante. Não se trata de dizer que essas questões assombram só aos professores, ou melhor, aos profissionais de educação - englobando desde o secretário da Educação até o bedel da escola. É uma questão que tem a ver com todos.
Questões das condições de trabalho, sociais, culturais, econômicas e políticas têm lugar no cenário escolar.
Essas questões em torno da profissão, vamos chamar assim, não podem ser as responsáveis pela falência da profissão. Porque essas questões rondam todos os profissionais, de todas as profissões. Por que somente entre nós, da Educação, que essas questões se transformam em impossibilidade?
O que nos outros lugares é desafio, aqui é dificuldade, impossibilidade, obstáculo.
Isso exige da gente, dos profissionais da educação, uma outra visibilidade sobre a própria profissão mais interessante, mais plástica, mais aberta, mais esperançosa.
Não se trata de negar as condições, mas de problematizá-las.
Certa vez você disse que escola onde entra o conhecimento, não entra droga. É por aí?
Eu acho! Escola onde tem prazer de viver - e isso você vê na cara dos professores, dos alunos - é um lugar onde a idéia do conhecimento impera. Se imperam outras questões - violência, drogas, seja lá o que for - de alguma maneira, o bom da vida está abafado, nublado.
A gente só tem uma arma na mão. Deveríamos acreditar mais que o conhecimento salva o mundo, mas nós achamos que tudo conspira contra.
Aquilo que conspira a favor do mundo, de uma boa vida, é o que temos nas escolas a preço de banana. Está lá todo dia. É o nosso metier.
Esse é o ofício do professor: o gosto pelo conhecimento que é aquilo que engedra o gosto pela vida.
Veja duas pessoas ao final de suas vidas: uma com escolaridade e outra sem para ver o que aconteceu com elas, com o corpo delas.
Como vencer a resistência dos alunos?
Você acha que os alunos são resistentes? Os alunos são absolutamente porosos para o que quer que você faça.
Se der lavagem, eles comem lavagem. Se der um banquete, eles comerão um banquete.
A gente deveria parar de pensar nos alunos e pensar mais na gente. Não tomar o aluno como problema.
Não acredito que haja resistência de nenhuma ordem por parte dos alunos. Qualquer um que for a uma escola e perguntar ao aluno mais bandido qual é a imagem de professor que ele tem, ele vai falar de um cara que goste de estar lá, fazendo o que está fazendo, que o trate com respeito.
Porque escola é um lugar bom! Tão bom que eles não saem de lá.
Você já afirmou que a violência é um problema de ética...
É claro. Sem dúvida nenhuma. Ninguém é violento de véspera. Ninguém nasce violento. A violência em geral é uma resposta a um conjunto de humilhações, silenciosas, que ocorrem todos os dias.
Agora tem um senão. Não se pode confundir violência com indisciplina, nem com incivilidade. São três âmbitos diferentes.
A indisciplina, em geral, é um protesto.
A incivilidade tem a ver com a idéia de rebeldia, de uma recusa, de uma descortesia, quando se rompem as regras de cortesias clássicas. Isso não é violência.
Violência tem a ver com danifinicação, com depredação quer da integridade física, quer da integridade moral do outro.
A violência simbólica, a da danificação moral do outro, é uma coisa que está solta nas escolas. Sempre desconfiamos que o outro não seja capaz ou digno de estar lá, que faça parte de fato do espaço escolar.
Temos um dilema terrível que é o seguinte: escolas públicas que entendem seu trabalho como esmola, como donativo para pobre, e escolas privadas que entendem seu trabalho como negócio para rico. Nem uma, nem outra é escola. Escola é um bem público sempre. Público na acepção mais bonita do termo.
É um direito das novas gerações. Sem ela, não há vida. Não há possibilidade de participação na cidade contemporânea, por isso a história da cidadania. Alguém sem uma boa escolaridade não participa, de fato, do mundo contemporâneo. Ou participa pela metade.
E como ensinar cidadania na sala de aula?
Como ensinar? Sendo. Fazendo. Sendo em ato. Tratando o outro como ele merece ser tratado, com respeito e com dignidade. Tratar o outro com dignidade é ser professor.
Então, que diretores dirijam, que coordenadores coordenem e que professores profecem para que os alunos estudem. É só isso que a gente tem de fazer acontecer.
Esta é a tarefa política fundamental de qualquer educador: fazer com que as escolas funcionem na sua carga máxima, a todo vapor.
Você tem uma mensagem para passar aos professores da rede?
Acho que a pior das violências é aquela onde você se violenta, violenta a si mesmo. Acho que cada profissional da educação desse País precisaria repensar se gosta de estar fazendo aquilo. Porque isso é condição sine qua non. É o grau zero da profissão sem a qual não tem saída.
Essa é a primeira questão porque se eu estiver me violentando sendo profissional da educação, hoje, é melhor fazer outra coisa.
Num segundo momento, é perguntar se você está disposto a dialogar com as crianças e com os jovens porque eu creio, penso e julgo que elas estão dispostas.
O que constitui a vida dessas pessoas é essa disposição para o diálogo com o mais velho, com as velhas gerações. Será que nós estamos?
Olhar com desesperança para as novas gerações é romper a idéia basal, o pacto mínimo, de qualquer educação, de qualquer povo, em qualquer tempo: que é cuidar sem trégua. Cuidar, cuidar, cuidar dos mais novos. Eu acho que a violência é um aviso que isso não está acontecendo.
Marcelo Tamada - CENTRO DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO - MÁRIO COVAS - SP
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