Gagueira:
“De ne-ne-nervoso, estou até fi-fi-ficando gago” é uma frase do samba “Gago Apaixonado”, composto por Noel Rosa, que marcou época e ainda hoje é cantado por aí. De maneira bem humorada, o autor remete a um problema de fala que tem atormentado crianças e adultos. São inúmeros os exemplos de pessoas gagas ao longo dos séculos.
No passado, a gagueira era entendida como um fenômeno de natureza psicológica que não tinha tratamento. Manifestava-se na infância e acompanhava o indivíduo até a morte. Em muitos momentos, transformava-se em motivo de chacota o que perpetuava a dificuldade e aumentava o constrangimento.
Gagueira tem cura. Quanto mais precoce o tratamento for instituído, melhores serão os resultados.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Drauzio – Todos nós gaguejamos em certas situações, quando não conseguimos explicar direito alguma coisa ou estamos num ambiente adverso. Quando a gagueira deixa de ser um fenômeno aceitável?
Fernanda Papaterra Limongi – Vamos começar pelo diagnóstico diferencial. A gagueira pode ser uma reação episódica ao estresse. A pessoa gagueja porque está sob tensão, falando em público ou enfrentando uma situação de perigo, por exemplo. Seu corpo está envolvido na ação como um todo: ela transpira, treme, tem taquicardia. Não é um simples problema de fala. A diferença crucial é que esse tipo de gagueira decresce ou cessa, à medida que o estresse vai desaparecendo.
Gagueira é problema quando a fala é interrompida por lutas, excitações e bloqueios em todas as situações de comunicação, inclusive na leitura. Gaguejar diante do chefe, ao apresentar uma desculpa pelo atraso, é muito diferente de fazê-lo na rotina da sala de aula ou ao pedir pão na padaria.
DESORDEM NA PRIMEIRA INFÂNCIA
Drauzio – Crianças pequenas gaguejam com frequência. Quando a gagueira das crianças deve ser motivo de preocupação para os pais?
Fernanda Papaterra Limongi – É muito difícil uma pessoa começar a gaguejar aos 15 anos ou na idade adulta. Normalmente, a gagueira funcional é uma desordem da primeira infância. Com três ou quatro anos, as crianças podem apresentar uma disfluência fisiológica, porque não dominam o vocabulário necessário para dizer tudo o que querem, estão ansiosas ou brigando pela atenção dos pais. A gagueira deve ser motivo de preocupação para os pais quando a criança está consciente da dificuldade e luta para falar. Nesse caso, se o problema persistir por mais de seis meses, eles devem procurar ajuda especializada.
Drauzio – Existe uma idade limite para determinar essa diferença?
Fernanda Papaterra Limongi –– Idade, não. O determinante é a luta e a consciência. Já vi crianças de três anos tensas, batendo a cabeça na parede ou o pezinho no chão porque não conseguiam falar, e crianças com sete anos um pouco disfluentes, mas sem consciência do problema nem lutando para falar. Essas podem esperar mais tempo e é comum o problema desaparecer sozinho.
GAGOS FAMOSOS
Drauzio – Sempre houve gagos na história da humanidade?
Fernanda Papaterra Limongi – Sempre. Segundo a Bíblia, Moisés era gago. Há um trecho em que ele diz – “Minha língua tarda”. Demóstenes, orador grego, mestre da eloquência, punha pedrinhas na boca e discursava à beira-mar para superar o problema e fazer a voz sobressair apesar do barulho das ondas.
Apesar de casos de gagueira fazerem parte da história da humanidade, o problema varia em função da cultura do povo e da importância que dá à comunicação. Numa comunidade de pigmeus, onde a comunicação oral é menos importante, praticamente não existe gagueira. No mundo ocidental, onde é muito valorizada, ela é mais prevalente.
Vale observar que a gagueira está ligada à autoestima e à aceitação do grupo. Marilyn Monroe era gaga, mas não gaguejava quando estava representando. Era fluente nos momentos que assumia a personalidade que não era a dela.
Há pessoas que gaguejam lendo, há as que gaguejam só diante de estranhos e as que gaguejam diante de conhecidos. Quando fazia estágio nos Estados Unidos, conheci um gago que trabalhava como Papai Noel e era perfeitamente fluente quando vestia as roupas de trabalho.
Drauzio – Dizem que Nélson Gonçalves, um grande cantor brasileiro, era gago. Por que as pessoas não gaguejam quando cantam?
Fernanda Papaterra Limongi – Por alguns motivos. Primeiro, por causa do ritmo. Qualquer pessoa que acompanhe um ritmo, mesmo o gago mais gago, fala com fluência. Basta bater cadenciado numa mesa, seguir o compasso do metrônomo ou falar destacando as sílabas des-te mo-do as-sim.
Tem gente que “trata” (veja que está entre aspas) gagueira colocando um metrônomo ou pedindo para a pessoa falar num determinado ritmo. Nessas condições, ela não gagueja, porque tal mecanismo funciona como distração e como marcador. Saindo dali, o problema reaparece.
Pesquisas norte-americanas mostraram que a gagueira desaparecia nos soldados que foram para a guerra do Vietnã, que funcionava como mecanismo de distração. Eles estavam muito mais preocupados com a sobrevivência do que com a comunicação oral
FATORES DE RISCO
Drauzio – De alguma forma, a gagueira está sempre ligada à insegurança?
Fernanda Papaterra Limongi – Eu diria que sim, embora existam gagos muito seguros. O assunto é polêmico. Na verdade, está e não está ligada à insegurança, porque para desenvolver gagueira são necessários três fatores, os três “P”: o fator predisponente (a pessoa tem predisposição genética, congênita), o fator precipitante que é sempre de origem ambiental e o fator perpetuante que mantém o problema.
A pessoa predisposta descarrega a tensão na fala e não em outro órgão do corpo e, quando se percebe gaga, fica com medo. Daí, entra num círculo vicioso. Quanto mais medo, mais gagueja, maior a ansiedade e fuga das situações de comunicação, mais estresse, mais repetições involuntárias. Insegura, prefere andar até o supermercado, que fica distante e onde não precisa falar, a entrar na padaria da esquina para pedir pão e leite. Agindo assim, ela colabora para que a gagueira se autoperpetue.
PREVALÊNCIA NAS FAMILIAS E NO SEXO MASCULINO
Drauzio – Há prevalência de casos de gagueira em algumas famílias?
Fernanda Papaterra Limongi – Existe uma incidência grande em certas famílias. Há um caso descrito na literatura de oito irmãos que eram gagos. Eu diria que a genética é um fator predisponente, mas não determinante. Não é porque a pessoa tem predisposição que obrigatoriamente irá desenvolver gagueira.
Drauzio – A gagueira é mais frequente nas meninas ou nos meninos?
Fernanda Papaterra Limongi – Em meninos, na proporção de três meninos para uma menina.
Drauzio – Existe alguma explicação para isso?
Fernanda Papaterra Limongi – Há 30 anos, atribuía-se ao fato de que se exigia mais dos meninos do que das meninas. Hoje, esse argumento não cabe. Provavelmente, alguma coisa ligada à genética possa explicar a maior incidência em meninos, mas ninguém sabe o que é.
PROBLEMA PSICOSSOCIAL
Drauzio – Interessante esse círculo vicioso ao qual você se referiu. Pessoas com dificuldade de fala evitam situações que as obrigue falar na frente dos outros. Ora, como falar em público implica aprendizado e treino, a tendência é só agravar o problema.
Fernanda Papaterra Limongi – Por isso, digo que a gagueira é um problema pessoal e um problema social também, porque a reação do ouvinte é muito importante. O gago espera causar boa impressão; espera que o ouvinte o entenda, elogie e aprove. As pessoas não gaguejam quando estão sozinhas em casa. Experimentos mostram que, lendo no quarto, sem ninguém por perto, o gago é fluente. Se notar, porém, que alguém se aproximou, começará a gaguejar. Se não perceber, continuará fluente.
Drauzio – Por isso, quem está de fora conclui que o problema é eminentemente psicológico, porque sozinho o gago consegue ser fluente.
Fernanda Papaterra Limongi – Nenhum gago gagueja falando com o próprio cachorro ou com um bebezinho, porque a exigência da comunicação desaparece. Sem cobrança, ele consegue falar bem. Isso pode reforçar a ideia de que a gagueira é um fenômeno só psicológico. No entanto, há outros fatores envolvidos.
Vamos voltar ao círculo vicioso. A expectativa de ter que falar gera tensão, que é um componente físico, e a musculatura não obedece. É como se a palavra ficasse presa. Já vi momentos de gagueira que se estenderam por quase um minuto.
Por que falando com o cachorro, com o bebê ou sozinha no quarto isso não acontece? Porque não havendo necessidade de preparar a fala, não existe ansiedade nem tensão.
PALAVRAS TEMIDAS
Drauzio – Existem palavras e letras temidas pelos gagos?
Fernanda Papaterra Limongi – A palavra problema é uma delas. O /p/ é um fonema explosivo que por si só oferece dificuldade. Além disso, existem dois grupos consonantais – pr e bl – que complicam a pronúncia.
Diante da palavra temida, a pessoa que conhece suas limitações constrói a gagueira no próprio corpo. Antecipadamente, prepara os articuladores necessários para a emissão dos sons e esse preparo faz com que a fala não seja automática. Quem não tem dificuldade presta atenção no conteúdo e não na forma do que está dizendo e o /p/ de problema, por exemplo, sai naturalmente. O gago presta atenção na forma, fica ansioso e tenso e prende a palavra.
Na escola, responder “presente” na hora da chamada é outra palavra temida por causa do /p/ e do grupo consonantal /pr/ no início da palavra. A criança treina em casa, ensaia, mas nada disso adianta quando a professora chama seu nome na sala de aula. Essa dificuldade explica por que é comum o gago bater na mesa, piscar o olho, entortar o corpo ou chutar a mesa quando precisa falar. Ele acha que, agindo assim, ajuda a articular a palavra.
IMPACTO PSICOLÓGICO
Drauzio – Não é incomum pessoas gagas serem motivo de chacota. Especialmente as crianças pequenas podem ser muito cruéis nessa fase. Qual é o impacto dessa atitude em quem tem dificuldade para falar?
Fernanda Papaterra Limongi – Sem dúvida, a reação do ouvinte pode ser uma agravante e provocar o desenvolvimento de mecanismos associados para evitar a chacota.
A pessoa foge das situações de exposição: falta no dia da chamada oral, não se junta ao grupo de colegas, torna-se mais tímida ainda e começa a criar mecanismos que a ajudam a compensar a dificuldade.
TRATAMENTO
Drauzio – Como costumam evoluir os casos de gagueira se não forem tratados?
Fernanda Papaterra Limongi – Até a década de 1960, não se tratava gagueira no Brasil. Quando muito, a pessoa era encaminhada para terapia que podia deixá-la mais ajustada, mas continuava gaga, se não tratasse as tensões.
Como a gagueira é uma desordem que se manifesta preferentemente na primeira infância, alguns indivíduos acabavam criando mecanismos que os ajudavam a vencer a dificuldade ou permaneciam gagos pela vida toda. Às vezes, eram obrigados a optar por profissões que não dependessem da fala como instrumento de trabalho. Soube de uma professora que selecionava as palavras usadas em sala de aula para evitar os fonemas temidos.
Embora muitos gagos não se tratem, gagueira tem tratamento e tem cura.
Drauzio – Em que consiste o tratamento de uma criança gaga?
Fernanda Papaterra Limongi – Primeiro, é preciso verificar se a criança está consciente da dificuldade e consegue entender o que está ocorrendo. Com crianças em idade escolar, a partir dos sete anos, jogo aberto e uso a palavra gagueira. Antigamente, não era essa a conduta recomendada. Empregavam-se eufemismos – ela tem um probleminha de fala, porque acreditavam que dar nome ao fato piorava o quadro.
Uma vez recebi uma criança que já havia feito terapia por bom tempo com uma pessoa que não mencionava a palavra gagueira. Quando lhe falei como chamava o distúrbio que apresentava, ela observou aliviada: “Que bom! Enfim alguém descobriu o que eu tenho”.
Drauzio – Não adianta disfarçar. Na rua, todos vão falar gagueira mesmo. Quando avalia uma criança, você lhe diz, “Olhe, você é gaga”?
Fernanda Papaterra Limongi – Falar que são gagas talvez seja um pouco forte demais. Digo que estão gaguejando e, na maioria das vezes, noto que elas se sentem aliviadas. A seguir, procuro determinar a gravidade da gagueira em leitura, no monólogo, na conversação, vejo se existem palavras temidas e se já adquiriram mecanismos como bater na mesa, piscar o olho ou valer-se de palavras e expressões que funcionam como muletas, tais como “hum, hum, hum”, “quer dizer”, “no caso”. Recentemente, recebi um paciente que falava “no caso”. Se lhe perguntávamos em que rua morava, respondia: “No caso, moro na rua tal”.
Drauzio – Muita gente faz isso. Tem quem fale né, entende, então, olhe, sabe, o tempo todo e sem a menor necessidade.
Fernanda Papaterra Limongi – Essas palavras funcionariam como mecanismos de adiamento para pensar o que falar. De qualquer forma, é até corriqueiro encontrar pessoa que tem esse hábito ao falar, mas ele não aparece na leitura, como nos gagos, pois, se não fizerem assim, não conseguem terminar a frase.
Drauzio – Que técnicas são usadas para corrigir esse problema?
Fernanda Papaterra Limongi – A modificação do comportamento é a técnica de que nos valemos para o tratamento. Se a criança tem mais de sete anos, filmo-a enquanto fala e depois peço que aponte o que vê de errado em sua comunicação. Às vezes, gagueja muito; às vezes, repete palavras, tensiona o olho, pisca ou entorta a boca sem tomar consciência do que está fazendo.
Definimos os momentos de gagueira como bloqueios (as palavras não saem), repetição (pa-pa-pa papagaio) e prolongamento (e…e…e…então) e quantificá-los ajuda a perceber a gravidade do distúrbio. “Em um minuto você gaguejou cinco vezes, ou duas, ou três.”
Existem pessoas que marcam consulta, mas não gaguejam quando atendidas, porque aliviam a tensão só de falar no assunto.
Drauzio – Como evolui o tratamento?
Fernanda Papaterra Limongi - Acredito que a gagueira seja um evento que pode ser desativado pela modificação do comportamento. Até as crianças entendem a analogia com um vidro de geleia difícil de abrir. A gente força, força, e só desiste quando atingiu o objetivo: girar a tampa e abrir o vidro. O mesmo acontece com a pessoa que quer falar “pato”, por exemplo. Ela força até a palavra sair, mas gagueja e vai ser assim enquanto não aprender que não pode lutar. Essa é a primeira etapa do tratamento: o cancelamento da luta. Diante da palavra temida, percebendo que vai lutar, a pessoa deve parar, desmanchar a postura articulatória, relaxar e tentar pronunciá-la com contato suave. Às vezes, no começo, não consegue fazê-lo numa situação de estresse ou pressa, mas repetindo a técnica, automatiza o comportamento e torna-se fluente.
Drauzio – Quer dizer que as pessoas podem não perceber suas dificuldades ao falar?
Fernanda Papaterra Limongi – A pessoa fala automaticamente e não percebe, por exemplo, que repetiu inúmeras vezes a mesma palavra. Por isso, o primeiro passo é ajudá-la a identificar o problema. O interessante é que, se lhe perguntarmos quantas vezes gaguejou ao ler um texto, acha que foram cinco. Quando vê o filme, descobre que foram cinquenta.
O processo de identificação é seguido pelo de cancelamento da luta: a pessoa tem que aprender a não lutar. O terceiro passo é aprender a falar com contato suave. A instrução é “Você está falando, percebeu que vai lutar, pare e relaxe a musculatura, como o faz quando cai a linha numa ligação telefônica ou alguma coisa lhe distraiu a atenção. Fique com a palavra congelada na boca, dando a impressão de que ia falar, mas desistiu”.
Drauzio – E o passo seguinte, qual é?
Fernanda Papaterra Limongi – O próximo passo é a fluência. A pessoa precisa aprender a ser fluente primeiro na leitura, depois no monólogo e, por fim, na conversação. Ela precisa aprender a falar sem luta, com contato suave e a abandonar os mecanismos adquiridos por causa da gagueira.
Drauzio – Como são tratadas as crianças muito pequenas?
Fernanda Papaterra Limongi – Se a criança é muito pequena, trabalho com os pais que são orientados para não a conscientizarem da luta ao falar. Em geral, a maioria não sabe como agir, se falam a palavra gaguejada ou ignoram o fato. O melhor é não chamar atenção para o problema. Os pais devem dar tempo para a criança expressar-se e jamais terminar por ela a palavra gaguejada.
Drauzio – Imagino que haja diferentes graus de gagueira. Há pessoas ligeiramente gagas e outras muito gagas. Em média, quanto dura o tratamento?
Fernanda Papaterra Limongi – Em média, o tratamento dura um ano. Esse é o tempo que se leva para estabelecer a fluência primeiro diante do terapeuta que conhece a dificuldade, o que deixa a pessoa mais à vontade. Depois, vem a fase de transferência para outras situações e de manutenção. No entanto, algumas pessoas com dois meses de terapia tornam-se tão fluentes e felizes que podem abandonar o tratamento.
Drauzio – Os resultados são gratificantes?
Fernanda Papaterra Limongi – São, se for uma gagueira funcional, o que ocorre na maior parte dos casos. Mais fluentes e felizes, as pessoas mudam de vida, porque a comunicação é fundamental. Quando existe um componente neurológico associado, a resposta depende da gravidade da lesão.
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