Demências frontotemporais:
Em Medicina, o termo demência tem um significado bem diferente daquele entendido pelos leigos, que confundem demência com loucura. Sob o ponto de vista médico, as demências compreendem um número grande de enfermidades incuráveis que apresentam certas características comuns entre si, mas com peculiaridades distintas umas das outras. Prova disso são a doença de Alzheimer, a demência vascular e dos corpúsculos de Lewy, as doenças de Pick, de Huntigton e de Creutzfeldt-Jakob e a demência frontotemporal (DFT), quase todas com etiologia e tratamento específicos.
A demência frontotemporal, em particular, é uma doença de início insidioso e progressão lenta que, em geral, acomete pessoas acima de 50 anos, mais as mulheres do que os homens, e cujos sintomas, muitas vezes, não são valorizados pela família. O primeiro sinal é uma crise de depressão tardia, seguida de distúrbios comportamentais, tais como desinibição, negligência com os cuidados pessoais e de higiene, desatenção, agressividade; distúrbios cognitivos (comprometimento da memória), rigidez mental, hiperoralidade, labilidade emocional e alterações da fala.
Como o número de idosos aumenta na maioria dos países, inclusive no Brasil, a demência frontotemporal está se tornando mais frequente. O diagnóstico é predominantemente clínico e leva em conta as alterações de comportamento e de personalidade do idoso.
CARACTERÍSTICAS DA DFT
Drauzio – Quais são as principais características da demência frontotemporal?
Sergio Ricardo Hototian – A demência frontotemporal é uma doença que abrange de 5% a 10% dos casos de síndromes demenciais. A prevalência é maior no sexo feminino, na minha opinião porque as mulheres vivem mais do que os homens.
Assim como a doença de Alzheimer e as demências vasculares, a DFT é uma enfermidade frequente e importante, mas seus sintomas podem passar despercebidos.
O primeiro sinal da doença é a mudança de comportamento no que se refere à resolução de problemas do dia a dia e a tendência à impulsividade. Começa a chamar a atenção da família a grande dificuldade que a pessoa mais velha demonstra diante de problemas já conhecidos e as formas diferentes de solução que encontra, muitas vezes, na base da força.
Drauzio – Em geral, a DFT atinge pessoas em que faixa de idade?
Sergio Ricardo Hototian – Geralmente, a partir dos 50 anos, e a evolução pode oscilar entre dois e vinte anos. No início, o principal sintoma é a depressão que costuma ser tratada com antidepressivos.
É importante ressaltar que depressões depois dos 50 anos devem levantar a suspeita de processo degenerativo do sistema nervoso, ou seja, de algum tipo de síndrome demencial. Isso não quer dizer que a pessoa recebeu um diagnóstico condenatório nem que terá de permanecer acamada num futuro próximo. Ao contrário, fechar o diagnóstico da síndrome de demência frontotemporal é de extrema importância, porque permite introduzir o tratamento para controlar os sintomas e, na maioria dos casos, ajuda o paciente a levar vida normal.
Drauzio – Você disse que a demência frontotemporal é caracterizada por mudanças de comportamento e por alterações na forma de resolver os problemas do cotidiano. Disse também que as pessoas com a doença tendem a tomar atitudes impulsivas. Você poderia dar um exemplo prático do que acontece com elas?
Sergio Ricardo Hototian – Por exemplo: pacientes com alta escolaridade e que dirigem há muitos anos, de repente, começam a bater o carro com frequência, não conseguem estacionar o veículo numa vaga e se atrapalham até para sair da garagem de casa. Ficam desatentos e se descuidam de observar os sinais de trânsito e os semáforos.
As síndromes frontotemporais geralmente passam despercebidas. Prefiro chamar de síndromes porque grande parte dos sinais e sintomas se instala antes de surgir o distúrbio da memória, que só fica evidente na fase final da doença.
De um outro exemplo você deve se lembrar. Quando começaram a realizar as cirurgias de revascularização cardíaca, as pontes de safena, foram muitos os casos de psicose cardíaca, que nada mais é do que uma crise de comprometimento frontal provocado pela exposição do cérebro a um hipofluxo, a uma pressão bastante baixa durante a operação que demorava muitas horas. Essa lesão imperceptível nos exames era responsável por mudanças no comportamento do paciente.
ALTERAÇÕES DE COMPORTAMENTO
Drauzio – Quais são as mudanças de comportamento características do comprometimento frontal?
Sergio Ricardo Hototian – Alterações da atenção, irritabilidade, perda da inibição e do controle social e da crítica sobre determinadas regras, oscilações de humor. As reações de alegria ou tristeza são desproporcionais ao estímulo. Por exemplo, a pessoa fica extremamente triste ao assistir a um filme ou ao tomar conhecimento de uma notícia ruim, enquanto ninguém ao redor atribui importância ao fato.
Nos casos mais graves, a síndrome frontotemporal promove um distúrbio que afeta a convivência ética do paciente, que pode desenvolver uma espécie de sadismo. Nos casos moderados, merece destaque a desatenção, o desleixo, a negligência com os cuidados pessoais e a perda de contato com os limites estabelecidos.
RECONHECIMENTO DOS SINTOMAS
Drauzio – Imagine uma pessoa de 60, 65 anos que entra num quadro depressivo – depressão é uma doença grave – faz tratamento e evolui com um comportamento um pouco estranho, age de forma inusitada, está mais irritada, distraída e desatenta. Esses são sintomas muito vagos. Como a família pode perceber as alterações que indicam a necessidade de encaminhar essa pessoa para assistência psiquiátrica?
Sergio Ricardo Hototian – Por serem sintomas muito difíceis de observar e considerados normais, inadequadamente normais, para a idade, não é raro as pessoas próximas deixarem de lhes atribuir a devida importância. Acham que, com a idade, o idoso ficou mais irritadiço e quer viver com privacidade. Isso explica ter assumido uma atitude de isolamento, mas todos o consideram absolutamente normal até que começa a acumular lixo em casa com o pretexto de que pode precisar daquelas coisas um dia.
Esse é um sintoma relevante da alteração do lobo frontal conhecida como síndrome de Diógenes, que se manifesta em pessoas acima dos 50 anos, mas há outros. Elas deixam também de se preocupar com o pagamento das contas e abandonam hábitos elementares de higiene e os cuidados pessoais.
O problema é que essas alterações graves de personalidade e comportamento só aparecem quando estão definitivamente instaladas. Por isso, deixo aqui um alerta: pessoa que tem a primeira crise de depressão depois dos 50 anos, fica mais irritada e passa a viver em isolamento, deve ser avaliada por um profissional habilitado.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Como é feito o diagnóstico das demências frontotemporais?
Sergio Ricardo Hototian – Certas características da doença foram descritas por Arnold Pick, em 1892, tendo como referência a história curiosa de um sujeito que levou uma machadada na região frontal do cérebro e chegou andando no hospital. Depois de algum tempo, porém, esse indivíduo desenvolveu uma série de alterações cognitivas e comportamentais associadas à degeneração do lobo frontal.
Atualmente, o diagnóstico clínico é realizado de acordo com os critérios propostos por Lund e Manchester, em 1994, para reconhecer os sintomas da doença, tais como desinibição, impulsividade, negligência com a higiene, dificuldade para resolver problemas, agressividade, depressão, sentimentalismo exagerado.
Segundo esses autores, com a evolução da doença, outros sinais importantes para o diagnóstico se manifestam. Entre eles podemos citar perda do controle dos esfíncteres, mudança de hábitos alimentares, consumo exagerado de tabaco e de álcool. Mesmo as pessoas que nunca beberam ou fumaram passam a fazê-lo de maneira compulsiva. Em geral, o último sintoma que aparece é alteração da memória.
Outra característica importante dessas síndromes é o comprometimento da fala. Aliás, as demências frontotemporais podem ter um perfil rapidamente progressivo quando surgem os distúrbios da fala.
DIFICULDADE DE FALA
Drauzio – Como se manifesta essa dificuldade para falar? A voz fica empastada, o vocabulário empobrece?
Sergio Ricardo Hototian – Geralmente, aparecem distúrbios como a disartria, ou seja, uma dificuldade na produção dos fonemas, na articulação das vogais principalmente, e a afasia. Os pacientes acabam perdendo a capacidade de usar as palavras para expressar-se, não porque a memória tenha falhado, mas por causa da lesão no cérebro. Com a evolução da doença, podem deixar de falar definitivamente.
Vou dar um exemplo. No decorrer de um ano, uma paciente deu mostras de ter adotado um comportamento estranho e apresentou um distúrbio de fala, sintomas que passaram despercebidos. Quando os familiares notaram que ela começou a coletar e a guardar objetos inadequados, atribuíram o fato a uma mania própria da idade. No entanto, no final desse período, ela caiu em mutismo absoluto. Cinco anos mais tarde, não saiu mais da cama e desenvolveu um quadro tardio de distúrbio da memória. Ao contrário do que acontece com a doença de Alzheimer, porém, os testes neuropsicológicos apenas indicaram um déficit de atenção.
OUTROS SINTOMAS
Drauzio – Isso quer dizer que na doença de Alzheimer os testes neuropsicológicos mostram as alterações cognitivas antes de aparecerem as manifestações clínicas, o que não acontece com as demências frontotemporais.
Sergio Ricardo Hototian – Exatamente. Na demência frontotemporal, o diagnóstico é basicamente clínico, porque os testes neuropsicológicos, em geral, não apresentam alterações além da perda de atenção.
Outra característica da doença é a irritabilidade, que é tolerada ou confundida pela família – “Ah, ela é assim mesmo” – no início. Quando associada, porém, ao uso de álcool ou de outras substâncias de efeito desinibidor, essa irritabilidade pode levar à perda dos parâmetros sociais e gerar atitudes agressivas, aumentando o risco de o paciente envolver-se em questões de ordem médico-legal.
Isso acontece porque é no lobo frontal que se processa a inibição responsável por estabelecer os limites sociais para os atos do dia a dia. Uma pessoa desinibida, com tendência à oralidade (come mais, fuma mais, bebe mais), está mais sujeita a envolver-se em brigas de trânsito, brigas com vizinhos e a desentender-se por assuntos que normalmente não a afetariam.
A tendência dos portadores da síndrome frontotemporal é ficar mais agitados durante as internações hospitalares e muito agressivos quando alguém lhes impõe limites. Ficam bravos, muito além do que seria justificável, quando lhes falam o que não querem ouvir e costumam jogar a culpa dos próprios erros nas costas dos outros. Com frequência, agridem o cuidador e as pessoas próximas, até fisicamente.
Alguns portadores de síndrome frontotemporal grave podem desenvolver sociopatias importantes e demonstram certo sadismo diante do sofrimento alheio.
COMPROMENTIMENTO CEREBRAL
Drauzio – O que acontece no cérebro dessas pessoas que as leva a apresentar quadros de irritabilidade, de déficit de atenção, etc.?
Sergio Ricardo Hototian – Ocorre uma degeneração desproporcional ao envelhecimento. Nós perdemos neurônios desde que nascemos. Isso não quer dizer que o indivíduo idoso esteja condenado a uma vida intelectualmente pobre e comprometida. No entanto, está provado que a atrofia do lobo frontal (a alteração começa sempre por esse lobo e só depois atinge o lobo temporal) provoca uma reação exagerada aos estímulos, em especial diante dos problemas.
Arnold Pick notou as alterações nas placas neuronais, embora não haja nada do ponto de vista anatomopatológico que permita confirmar o diagnóstico de demência frontotemporal.
Drauzio – Não há nenhuma alteração no cérebro que seja característica dessas doenças…
Sergio Ricardo Hototian – Para a doença de Pick, existe, mas as síndromes frontotemporais ultrapassam os pré-requisitos descritos por Arnold Pick. Por isso, é importante levar em consideração o quadro clínico, o comportamento do paciente, a presença de depressão tardia, depois dos 50 anos. Embora os exames de imagem funcionais, principalmente o SPECT e o PET-Scan possam revelar um hipofluxo, ou seja, uma queda na concentração de oxigênio na região frontal do cérebro, o diagnóstico é sempre essencialmente clínico.
FORÇA DE DECISÃO
Drauzio – Você mencionou pessoas que começam a coletar e a guardar objetos inadequados. Recentemente, em São Paulo, houve o caso de uma senhora que acumulou não sei quantas toneladas de lixo em casa. Ela se enquadrava nos quadros de demência frontotemporal?
Sergio Ricardo Hototian – Não dá para afirmar, mas é possível que sim. O impressionante é que ela fez isso ao longo de anos. No início, ninguém desconfiava do que estava acontecendo e foi difícil demovê-la, pois achava que agir daquela forma era perfeitamente correto e normal.
Na verdade, essas pessoas podem ter tamanha força de decisão que chegam a confundir quem com elas interage. Aliás, as síndromes frontais podem deixar a pessoa cada vez mais firme em suas atitudes e crenças, tornando-as cada vez mais isoladas, avessas ao diálogo e mais irritadiças.
Drauzio – Durante muito tempo, acreditou-se que alguns idosos tinham esse perfil, ficavam rabugentos…
Sergio Ricardo Hototian – Não é verdade. Essa alteração é conhecida em países com grande número de idosos, como a França, Suécia e Inglaterra, cuja população vem envelhecendo há cem ou duzentos anos. Ou seja, são países com muitas pessoas idosas e poucos jovens e crianças (no Brasil, o número de idosos vem aumentando há apenas 20 anos).
A experiência desses países foi confirmada pela pesquisa de um grupo inglês, cuja conclusão foi que pacientes idosos, que vivem sozinhos, precisam ser visitados de vez em quando, uma vez que cinco pessoas acima de 65 anos em cada 10 mil correm o risco de desenvolver a síndrome.
É o caso do grego que dormia dentro de um barril e acumulou objetos inúteis ao longo dos anos, pois acreditava que precisaria deles no futuro. De alguma forma, ele tinha a percepção de que podem ocorrer situações na velhice em que se perde a independência.
Portanto, outra característica da doença no lobo frontal é o paciente adquirir uma força maior de decisão, mas perder a crítica, o “insight”. Esse sintoma não aparece na doença de Alzheimer. Ao contrário, pessoas com Alzheimer ficam mais frágeis. Se você lhes pergunta alguma coisa, elas se voltam para o acompanhante em busca de confirmação, porque não têm certeza de suas respostas.
Já os portadores de demência frontotemporal são cheios de certeza. Vi casos de pessoas que não deixavam ninguém entrar no quarto, que era limpo só uma vez por ano, na época do Natal. Uma vez presenciei a retirada de um paciente de um quarto de hotel, onde não permitia que ninguém entrasse. Quando finalmente conseguiram abrir ao aposento, encontraram uma mala com aproximadamente 200 baratas. Ele guardava de tudo ali: restos de comida, objetos inúteis, lixo.
A intensidade da negligência com a higiene e com os cuidados pessoais pode variar de leve a grave. Leve, quando fica limitada à rotina diária da própria pessoa e não perturba quem está por perto; moderada, quando a mudança de comportamento passa a restringir as atividades do dia a dia, e grave, quando as alterações caracterizam um quadro de demência, termo usado no Império Romano há mais de dois mil anos e que nos remete à ideia de loucura irreversível.
EVOLUÇÃO E TRATAMENTO
Drauzio – Em que consiste o tratamento das demências frontotemporais?
Sergio Ricardo Hototian – O tratamento é sintomático. Se o paciente apresentar um quadro depressivo, são indicados medicamentos antidepressivos por tempo limitado e observa-se a reação. Pode-se recorrer, ainda, aos remédios inibidores da acetilcolinesterase, prescritos contra a doença de Alzheimer, que também se mostram eficazes para melhorar o comportamento dos portadores da síndrome, e aos neurolépticos, que ajudam a inibir a agressividade e a impulsividade, mas tudo feito de maneira cuidadosa, muito delicada, com bom-senso, porque esses pacientes respondem mal a doses altas de medicação.
Drauzio – A doença evolui progressivamente, ou pode estabilizar?
Sergio Ricardo Hototian – Geralmente, tratando os sintomas, essas pessoas levam vida normal, desde que acompanhadas. Aumentando os níveis de acetilcolina na fenda sináptica, pode-se evitar que a doença se agrave, ou seja, evitar que os quadros incapacitantes se instalem.
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