Marcia Tiburi: educação, filosofia e as mulheres:
Filósofa, professora, artista, escritora, feminista e mãe. Formada em Artes Plásticas e Filosofia, com apenas 20 anos já fazia mestrado e, com 25, dava aula na graduação. “Sempre fui uma das raras mulheres do meu curso”, afirma Marcia Tiburi.
A gaúcha de 41 anos ficou famosa por participar durante cinco anos do programa Saia Justa, do canal por assinatura GNT. Atualmente, é professora do programa de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie, em São Paulo, e escreve artigos para a Revista Cult, espaço que considera essencial para levantar reflexões e dialogar com o público fora da sala de aula.
Por trás de tudo isso está seu principal objetivo profissional: levar a prática da filosofia para o dia a dia das pessoas. E um dos grandes frutos dessa empreitada é o projeto Filosofia do Rock, realizado pelo CCBB (Centro Cultural do Banco Brasil) no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. O programa nada mais é que um bate-papo entre ela e músicos convidados, sobre temas do rock e da filosofia, traçando afinidades entre as obras de famosos roqueiros com questões levantadas pelos principais pensadores do século XX.
Neste Dia das Mulheres, o Portal Aprendiz conversou com Marcia Tiburi sobre a questão de gênero no mundo contemporâneo e a importância da educação, da reflexão – e, por que não, da filosofia – como forma de emancipação feminina. Confira!
Portal Aprendiz – Qual a importância de levar a filosofia para o cotidiano das pessoas?
Marcia Tiburi - Quando comecei a dar aula percebi que meus alunos não só queriam aprender a história da filosofia, mas também a pensar em si mesmos e em relação ao mundo que vivem. Sempre tive a ideia de que a filosofia podia mais, falta filosofia na vida das pessoas e nas instituições. Em termos políticos e éticos é muito claro o porquê dessa ausência. O pensamento elucida, esclarece, liberta, e digamos que a liberdade hoje não seja um valor promovido por aqueles que comandam os dispositivos de poder. O espaço do pensamento está colonizado pelos meios de comunicação, pela moral, política e religião. A tarefa dos filósofos se assemelha a um combate e acho que o papel da minha geração é colocar mais filosofia no mundo.
Aprendiz – Como levar a prática da filosofia às pessoas em um país cuja população ainda tem uma baixa escolaridade?
Tiburi – Há um problema cultural muito sério no Brasil que vem da política e do sistema econômico. O capitalismo despreza a educação, mesmo para os ricos, que é voltada para a disciplina, controle e submissão. Raramente encontramos projetos no Brasil de real emancipação pela educação e pouco se fala da educação como formação da subjetividade. O caminho da filosofia é necessariamente o da educação. No Brasil, a ditadura militar baniu a filosofia do currículo, já que um pensar reflexivo era ameaçador para o sistema de poder. Apenas recentemente, retornou como disciplina obrigatória nas escolas. Com o desprezo da educação e tudo aquilo que é formativo, a filosofia acaba pegando a rebarba de todo esse processo e acaba sendo complicado falar com os estudantes utilizando qualquer exemplo de erudição. Por isso, trago aos meus alunos coisas novas e muito do que já se conhece. Tenho usado muito cinema e o rock nas minhas aulas, tentando buscar o que chamo de “Filosofia Pop”, que é a filosofia dos conteúdos rejeitados. Tudo o que a academia rejeita, eu me interesso. A tarefa da filosofia de produzir diálogo no mundo é justamente fazer a ponte entre esses universos. É difícil, mas eu sou otimista! Por isso, o meu papel é o da luta.
Aprendiz – Nos livros “Mulheres, Filosofia e Coisas do Gênero” e “As Mulheres e a Filosofia”, você aborda o feminismo. Quando começou a se interessar por essa temática?
Tiburi – Até a faculdade eu nunca tinha me preocupado com a questão de gênero, assim como a maior parte das mulheres que não sofreram violência simbólica e nem física. No mestrado, percebi que eu praticamente não tinha colegas do sexo feminino, e no doutorado não tinha nenhuma. Conforme você sobe na vida acadêmica, as mulheres vão rareando. Em duas universidades, fui a primeira mulher a dar aula de Filosofia, em cursos que existiam há 40 anos. Foi no doutorado que comecei a ficar feminista, eu ficava numa sala cheia de homens e eles falavam tanta bobagem que eu ficava amendrontada. Ao ler Filosofia, você percebe que quando os homens falam de mulheres eles falam que elas não pensam. A história da Filosofia é homossexual, homofóbica e muito machista. As mulheres começam a aparecer no cenário apenas no século XX, o livro da Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo” (1949), [ que discute o papel das mulheres na sociedade] é uma grande novidade. E ela diz algo muito importante, que as mulheres são marcadas pela sua sexualidade. E isso justifica o fato das mulheres ganharem salários mais baixos que os homens, não ocuparem cargos de poder.
Aprendiz – Dentro dessa questão, que temas têm te chamado mais atenção ultimamente?
Tiburi - Recentemente escrevi o livro “Filosofia, machismos e feminismos”, que fala sobre o aborto e o que o discurso e as práticas institucionais querem fazer com nossos corpos. São diversas as questões que devem ser levantadas, desde o problema é a saúde da mulher e se ela consegue criar aquele filho, até se ela deseja ter esse filhos. Outra questão que também me chama muita atenção é a maternidade. No Brasil, há o mito da maternidade, que envolve todo um sistema moral que pesa sobre as mulheres. Pela simples condição de ser mulher, se espera que você seja mãe e que você tenha uma postura natural em relação a isso, se naturaliza a maternidade. E nós não somos seres naturais, somos seres culturais. É essa naturalização que faz com que as mulheres também ocupem as profissões do cuidado, como enfermeira, psicóloga e professora de séries iniciais.
Marcia Tiburi acredita que é necessário discutir a questão das mulheres dentro e fora da sala de aula.
Aprendiz – Como a educação pode ajudar na emancipação feminina?
Tiburi – Para Adorno, a educação só tem função enquanto emancipação. Eu considero que a emancipação das mulheres envolve um caminho um pouco mais longo que o dos homens. Marx falava que as mulheres eram os proletários dos proletários, e nós sabemos o quanto elas estão condicionadas a isso no sistema capitalista, hoje ela são as massas de trabalhadores. A humilhação das mulheres é uma constante cultural. São tratadas como carne , objeto e há mil tentativas de humilhá-las sempre que elas comparecem em posições de poder. Um exemplo é a Michelle Obama, que é advogada e quando virou primeira-dama, foi tratada como mulher-fêmea, negra e sensual que vivia somente para o seu marido. Já vi isso até em relação a mim e isso me revolta. Em vez de olharem para o que escrevo, olham para o fato de ter aparecido na televisão, se estou magra ou gorda. É por isso que cortei meu cabelo e o deixo com fios brancos, meu cabelo embraquecendo é uma bandeira contra essa hetero-regulação que fazem sobre nossos corpos. A própria exigência de que você esteja sempre bonita e magra é uma humilhação sobre você. Nós não fazemos isso com os homens não é? Talvez a educação, no ponto onde ela possa discutir a questão de gênero, devesse ajudar as mulheres a pensarem no porquê e como elas se tornaram aquilo que são hoje. Isso é uma pergunta urgente: o que está acontecendo com as mulheres hoje. Você as vê desesperadas por procedimentos estéticos, roupas, hormônios, ginástica. Por que esse desespero feminino? O que vai nos faltar sem tudo isso? Talvez o discurso do patriarcado de que está faltando alguma coisa nas mulheres tenha realmente colado sobre as mulheres. Em tempos em que as mulheres se apoderaram radicalmente, isso não é mais a questão.
Aprendiz – Quanto menor a escolaridade e menor a condição financeira, maior o machismo? Por quê?
Tiburi - Acho que sim. Uma mulher que pode se bancar é menos vítima das violência físicas que o machismo pode lhe oferecer. Ela pode não ter um homem e bancar a sua vida de mulher solteira e sua condição de mãe que não quis ter um pai para o seu filho. As mulheres que têm uma situação econômica mais favorável podem se sentir mais livres. Ao mesmo tempo, tem toda uma violência simbólica que pesa sobre elas, sendo cobradas de ficarem para titias, mães solteiras ou lésbicas. Mas também podemos pensar que homens que tiveram mais chances de estudar são menos machistas. Em certas classes sociais menos favorecidas as mulheres muitas vezes são bem mais subservientes aos homens, consideram muito mais importante ter um homem, a gravidez na adolescência tem muito a ver com isso. Quem engravida mesmo na adolescência é a mulher da periferia. Não que as classes altas não engravidem, mas elas “podem” fazer aborto e elas são melhores orientadas.
Aprendiz – Como podemos levar essa discussão que é tão delicada para essas mulheres que sofrem de violência física e como a filosofia pode ajudar nisso?
Tiburi - Não podemos simplesmente inventar um discurso e lançar para as pessoas. É preciso criar em cada contexto soluções que envolvam justamente a situação vivida por essas pessoas. É aí que eu acho que a filosofia é muito legal, embora o seu alcance atual seja curto. Mas o importante é conversar, estabelecer circuitos de diálogos. Quanto mais acesso à informação, melhor, mas só isso não basta, tem que ter reflexão sobre a informação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário