Chagall e Cendrars: "
Marc Chagall, Eu e a Aldeia, 1911, óleo sobre tela, 191 x 150.5 cm, The Museum of Modern Art, New York.
“… <<Eu e a Aldeia>> tem origem em Blaise Cendrars, o companheiro mais importante de Chagall durante os anos parisienses. O sugestivo stacccato das imagens, esboçadas por Cendrars nos seus poemas e romances, a jovialidade anárquica dos seus neologismos, correspondem ao mundo das maravilhas associativas de Chagall, porventura ainda mais do que a perfeição intelectual dos seus colegas pintores.
Foram literatos que confirmaram Chagall no seu percurso, que compartilharam a sua inclinação para a poesia e com ele buscaram nas coisas significados ocultos. <<Um gênio dividido como um pêssego>>, era assim que Cendrars chamava seu amigo. Chagall retribuiu com <<O Poeta>> (…). O poeta está sentado à mesa sozinho. Segurando na mão a chávena de café, ao lado uma garrafa de aguardente que se estende, sofregamente, em direcção a ele, ele parece escutar no momento uma inspiração poética. Em todo o caso, está completamente absorvido por um mundo imaginário, sobrenatural; a cabeça e o espírito estão separados do corpo, ultrapassando até mesmo o retículo das diagonais, no qual o mundo figurativo se encontra encaixado.
Nesta homenagem ao literato de café, Chagall mostra já tendência para se distanciar da geometrização cubística do quadro. O entrelaçamento de linhas, até agora só responsável por uma ordem construtiva, assumiu aqui tarefas a nível de intenção do quadro, prendendo, porém, na sua rede a figura, o corpo do poeta, para libertar desta ligação, de forma mais eficaz, a cabeça como portadora da inspiração. A força imaginativa do poeta, a sua independência do princípio metódico significava a própria independência de Chagall. Estruturas geométricas tornam-se, simplesmente, metáforas, intermediários para a poesia.”
MARC CHAGALL
Marc Chagall, O Poeta (Trêe Meia), 1911, óleo sobre tela, 196 x 145cm, Philadelphia Museum of Art, Philadelphia.
<<Dorme
Está acordado
Pinta de repente
Agarra numa igreja pinta com uma igreja
Agarra numa vaca e pinta com uma vaca
Com uma sardinha
Com crânios mãos facas
Pinta com a fibra do nervo de um boi
Com todos os sofrimentos imundos de
pequenas cidades judaicas
Despedaçado por paixões ardentes da
profundidade da Rússia
Para França
Morto o coração e os prazeres
Pinta com coxas
Os olhos no traseiro
Aí está o vosso rosto
És tu querido leitor
Sou eu
É ele
A própria noiva
O merceeiro na esquina
A vaqueira
Parteira
Em baldes de sangue lavam-se os
recém-nascidos
Céu repleto de loucura
Bocas jorram modas
A Torre Eiffel parecendo um saca-rolhas
Mãos amontoadas
Cristo
Ele próprio o Jesus Cristo
Na cruz viveu longamente a juventude
Um novo suicídio a cada dia que nasce
De repente deixa de pintar
Estrangula-se com uma gravata
Chagall atónito
A imortalidade segura-o.”
BLAISE CENDRARS
In: WALTHER, Ingo F., METZGER, Rainer. Chagall. Tradução de Lisette Queirós Werner. TASCHEN, 2004. p.20-23.
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