sábado, 7 de maio de 2011

BOA CONVIVÊNCIA (1/3) çè

FONTE: RADIS
Fotos: Dayane Martins



Bruno Dominguez
Está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: a educação, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Mas, ao se comparar a escola ideal e a escola real, é impossível não constatar que o esperado ambiente de relações harmoniosas está permeado por manifestações de violência, muitas vezes, expressas em situações de opressão veladas ou, ao menos, pouco evidentes à primeira vista.
Essas, ao lado de situações mais perceptíveis, como agressões físicas ou verbais, humilhações, depredações e, ainda, baixos salários pagos aos professores, acabam por ferir grande parte dos princípios do ensino estabelecidos pelo texto legal: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância; e valorização do profissional da educação escolar. Formas de violência que deixam marcas físicas e psicológicas em alunos, professores e funcionários, impedindo que todos cumpram integralmente seus papéis.
Foto: Sérgio Eduardo de Oliveira
Simone aponta três categorias de violência: contra a escola, da escola e na escola
Cursos voltados a professores e programa do Ministério da Educação com foco nas relações escolares são algumas mostras de que o tema mobiliza e é alvo de preocupação. “O uso da violência, seja física ou psicológica, constrói, na sala de aula, um ambiente pouco propício à aprendizagem e, na escola pública, constitui mais um fator de agravamento da exclusão social a que estão submetidas as parcelas de baixo nível socioeconômico da população”, avalia a pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves/Ensp/Fiocruz) Simone Gonçalves de Assis.

Uma das coordenadoras do Curso de Atualização em Enfrentamento da Violência e Defesa de Direitos na Escola, Simone explica que há três categorias de violência no ambiente escolar: contra a escola, da escola e na escola. A violência contra a escola tem a ver com as condições de trabalho, os baixos salários e a formação equivocada de professores. “Há uma gama de fatores estruturais que são uma forma concreta de violência, como a má localização das unidades e a falta de equipamentos em sala”, exemplifica Simone.

Ao longo dos anos, analisa a pesquisadora, as políticas públicas nesse setor provocaram o sucateamento das escolas e a desvalorização social do professor. “Essas ações se refletiram profundamente na queda da autoestima dos profissionais e da qualidade do ensino, criando um cenário propício à escalada da violência”. Também se incluem nessa categoria atitudes violentas de pessoas ou grupos externos à escola: depredações, roubos e uso do espaço para tráfico de drogas.

Se a escola é vítima, também é agressora. A violência da escola está ligada às relações hierárquicas do sistema educacional, diz Simone. Vários estudos sobre o tema indicam a violência simbólica como a principal forma de violência promovida pela escola — violência simbólica é um conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), que via a sociedade como um campo de dominação e de reprodução dissimulada das desigualdades sociais nas instituições.
A violência na escola mais visível e mais comentada se expressa em várias modalidades: violência entre alunos, violência do aluno contra o professor, da escola e do professor contra o aluno, entre os profissionais da educação, do sistema de ensino contra a escola e o professor, do funcionário contra o aluno, do aluno contra o patrimônio da escola. Nessa categoria, explica Simone, pesquisas apontam a violência protagonizada pelos alunos como a mais frequente e que mais afeta o cotidiano escolar.
‘Bullying’
Embora seja apenas uma das diversas formas de violência entre alunos, o bullying é hoje a que mais chama a atenção de pais, professores e da mídia. Bullying é palavra da língua inglesa que designa abuso do poder físico ou psicológico entre pares, envolvendo dominação e prepotência, por um lado, e submissão, conformismo e sentimentos de impotência, raiva e medo, por outro. O conceito abrange práticas como colocar apelidos, humilhar, discriminar, divulgar comentários maldosos, amedrontar, bater, empurrar, roubar, excluir, ignorar e ameaçar.
O livro Impacto da violência na escola — Um diálogo com professores (Editora Fiocruz), material do curso coordenado por Simone e do qual ela é uma das organizadoras (ao lado de Patrícia Constantino e Joviana Quintes Avanci), informa que o bullying pode ser identificado a partir de três tipos de comportamento: agressivo e intencionalmente nocivo; repetitivo; e que se estabelece em uma relação interpessoal assimétrica, de dominação. Outras características são o fato de a vítima se sentir incapaz de se defender e até de perceber a si mesma como vítima, e de a agressão acontecer sem provocação ou motivo evidente.
Pesquisas internacionais divergem quanto à porcentagem de alunos envolvidos nessa prática, como vítimas ou como agressores, com índices que variam de 10% a 76,8%. No Brasil, a Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar 2009, realizada pelo IBGE, concluiu que quase um terço dos alunos entrevistados (30,8%) sofreram bullying. Estudantes do 9º ano do ensino fundamental (antiga 8ª série) de 6.780 escolas públicas ou privadas das capitais e do Distrito Federal responderam a pergunta: “Nos últimos 30 dias, com que frequência algum dos seus colegas de escola o esculachou, zoou, mangou, intimidou ou caçoou tanto que você ficou magoado/incomodado/aborrecido?”. Os que se disseram alvo desse tipo de violência raramente ou às vezes somaram 25,4%; os que afirmaram ter sido vítimas na maior parte das vezes ou sempre foram 5,4%. A ocorrência de bullying foi verificada em maior proporção entre alunos de escolas privadas (35,9%, contra 29,5% nos de públicas) e entre meninos (32,6% ante 28,3% de meninas).
Preconceito e discriminação
Grande parte das manifestações de violência no espaço escolar pode ser atribuída ao preconceito e à discriminação — por gênero, cor da pele, orientação sexual ou deficiência. A pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, encomendada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC) à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), constatou que pessoas com deficiência, negras e homossexuais são as que mais sofrem.
Foram entrevistados 18.599 estudantes, pais e mães, professores e funcionários da rede pública de 500 escolas de todos os estados do país. Desses, 99,3% declararam ter algum tipo de preconceito — 96,5% com relação a pessoas com deficiência, 94,2% de caráter étnico-racial, 93,5% de gênero, 91% de geração, 87,5% de condição socioeconômica, 87,3% de orientação sexual e 75,95% territorial.
Quando perguntados sobre o nível de proximidade que estabeleceriam com esses grupos, 72% revelaram o desejo de manter distância de homossexuais, 70,9%, de pessoas com deficiência intelectual, 70,4%, de ciganos, 61,8%, de pessoas com deficiência física, 61,6%, de índios, 61,4%, de moradores da periferia e/ou de favelas, 60,8%, de pessoas pobres, 56,4%, de moradores e/ou trabalhadores de áreas rurais, e 55%, de negros.
Os que relataram conhecer o bullying contra alunos apontaram como motivação o fato de a vítima ser negra (19%), pobre (18,2%) ou homossexual (17,4%). No caso dos professores, o bullying é mais associado à idade (8,9%) e, no de funcionários, à pobreza (7,9%).
Reflexos da sociedade
No Ministério da Educação, o tema é tratado principalmente pelo programa Escola que Protege, voltado à promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes e ao enfrentamento e prevenção das violências no contexto escolar. A ação se dá pelo financiamento de projetos de formação continuada de profissionais da rede pública de educação básica e pela produção de materiais didáticos e paradidáticos. Segundo a coordenadora-geral de Articulação Institucional da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC), Rosiléa Wille, o objetivo é levar as escolas a adotar mecanismos pedagógicos para enfrentar as violências de modo educativo e não repressivo. “As pessoas devem aprender a dialogar para que os conflitos no ambiente escolar sejam motivadores de conhecimento pessoal e crescimento coletivo, favorecendo um clima de aprendizagem e boa convivência”, diz.
Ainda este ano, 6 mil escolas públicas devem receber cartilha, cartazes e vídeos sobre homossexualidade. O anúncio da preparação desse conteúdo provocou polêmica, em mais um exemplo de que a discriminação no ambiente escolar é reflexo de uma sociedade que ainda não sabe lidar com a diversidade. O material passou a ser chamado de kit gay e apontado como estímulo à homossexualidade entre crianças e adolescentes.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) divulgou comunicado apoiando o kit anti-homofobia: “Os materiais estão adequados às faixas etárias e de desenvolvimento afetivo-cognitivo a que se destinam, de acordo com a Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade, publicada pela Unesco em 2010”.


A maneira correta de se lidar com a diversidade não é consenso nem na Educação. Na Conferência Nacional de Educação, realizada em março de 2010, representantes dos surdos defenderam uma escola própria — proposta que acabou rejeitada. “Dinheiro público é para a escola pública de qualidade para todos, não só para os que têm deficiência, nem só para os que não têm deficiência”, defendeu o delegado David de Souza, membro do Conselho Nacional de Juventude, com paralisia cerebral. “Não queremos uma escola para os surdos, queremos uma escola para todos” (Radis 94).
Escola inclusiva
Para a jornalista Claudia Werneck, superintendente geral da Escola de Gente, organização da sociedade civil voltada a comunicação e inclusão, a escola brasileira está longe de tratar corretamente a diversidade. Ela defende a escola inclusiva, que se baseia no direito de todos a receber uma educação de qualidade que satisfaça suas necessidades básicas de aprendizagem e enriqueça suas vidas.
“Nosso sistema é violento e discriminador”, critica a jornalista, para quem a agressividade entre estudantes é a representação máxima de uma proposta pedagógica excludente. Ela se lembra do gordinho afastado do jogo de vôlei, do desafinado retirado da sala de música e de tantas outras situações que se repetem na maior parte das escolas, sem que os envolvidos percebam que estão praticando violência.


Para Claudia, toda escola pública ou privada que se recusa a se tornar inclusiva, aberta à diversidade humana, voltada à educação de quem existe de fato, e não quem se gostaria que existisse, é violenta. “As escolas devem abrigar todo o tipo de criança, as que andam ou não, os filhos de cigano, os filhos de afegão, os filhos de mãe assassina, com nariz escorrendo, com doença”. E faz um alerta: “Os pais podem ter certeza de que a escola que discrimina uma criança por ser deficiente discrimina seus filhos por outras razões”. Em outras palavras, “quando se fere uma criança, se fere todo o sistema educacional”.
O doutor em Educação Miguel Arroyo, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, também ressalta que a relação pedagógica deve ser um diálogo de saberes, vivências, valores, culturas, formas de pensar e de ler o mundo. “Essa concepção pedagógica de reconhecimento da diversidade instaura outra relação nas salas de aula, enriquece a docência-aprendizagem mútuas”, avalia.
Arroyo defende que se entenda essa relação como um processo educativo-formador, em que as duas pontas — educador e educando — estão em formação e humanização. “Essa concepção de prática pedagógica instaura relacionamentos mais delicados”.  èfessores, funcionários e alunos.

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