Apesar de o número de alunos ter triplicado, ainda é preciso superar dificuldades de acesso para garantir frequência no ensino
Ivan Siqueira Reis, 31 anos, está reaprendendo a viver há dez anos. Apesar de já ter passado um terço da vida com problema de visão, ele se lembra bem de como o mundo é mais fácil para quem enxerga. Pegar ônibus, se locomover entre as salas de aula, ter acesso a materiais didáticos. Para o aluno do 2º semestre de letras-japonês da Universidade de Brasília (UnB), tudo o que faz parte da rotina de qualquer estudante é precário.
Na UnB, Ivan pede ajuda para circular pelo corredor em busca das salas de aula, não esbarrar nas pessoas ou não tropeçar nas calçadas. Ele ainda não tem muita mobilidade para se locomover sozinho, mesmo usando bengala. Os prédios também carecem de melhor estrutura, como rampas de acesso, sinalizadores tácteis nas portas e a numeração das salas em Braille (sistema de linguagem táctil para cegos), por exemplo. “Eu brinco com todo mundo: é melhor continuar enxergando direitinho”, diz.
O estudante conta com a ajuda de um programa que dá apoio a pessoas com necessidades especiais na universidade para driblar os problemas. O projeto oferece tutores, material impresso em Braille ou sonoro e um laboratório de apoio aos deficientes, que possui equipamentos adaptados. Aos poucos, ele conta que os professores também vão se acostumando com a presença - e as necessidades - dele em sala de aula. "Os professores mudaram a forma de ensinar a língua por minha causa", conta.
Ivan, que perdeu a visão em decorrência de um tumor no cérebro, ainda é minoria nos ambientes escolares. Na educação básica, os 68 mil deficientes visuais representam apenas 0,13% dos 52,6 milhões de alunos matriculados em escolas públicas e particulares do País. No ensino superior, o contingente de 5,2 mil deficientes visuais simboliza somente 0,09% dos 5,8 milhões de universitários, segundo o Censo da Educação Superior de 2008.
As estatísticas oficiais sobre os deficientes visuais do País mostram que muitos estão de fora desse universo. De acordo com o Censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000, último dado oficial sobre essa população no Brasil, 16,6 milhões de brasileiros possuíam algum tipo de deficiência visual e 150 mil eram cegos. Em 2003, apenas 25 mil estudavam. O número triplicou em 2009, mas ainda falta muito para garantir que todas as crianças, jovens e adultos que não enxergam estejam incluídos nas redes de ensino do País.
“Há um conjunto de ações, de políticas públicas, que têm impulsionado esse processo de inclusão. Historicamente, as pessoas com deficiência estiveram à margem da sociedade por falta de políticas para elas. O Estado se eximiu da responsabilidade e repassou dinheiro a organizações não-governamentais para que elas assumissem um papel que era do Estado”, afirma Martinha Clarete Dutra, diretora de Políticas de Educação Especial do Ministério da Educação.
Martinha, que também é deficiente visual, ressalta que as pessoas que têm esse problema só precisam de recursos materiais para aprender como os outros alunos. “O conteúdo, o currículo e o conhecimento transmitidos não são distintos. Só a forma de apresentá-los. O material que eles precisam é diferente”, diz.
Políticas adotadas pelo MEC para garantir inclusão |
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Investimento em formação docente |
Adequação arquitetônica dos prédios escolares |
Salas de recursos |
Livros didáticos |
Inclusão
Nas universidades, a presença de estudantes cegos ou com baixa visão aumentou 475% de 2003 a 2008. Naquele ano, havia apenas 920 alunos nas instituições de ensino superior brasileiras. Agora, há 5,2 mil. Nas escolas, o crescimento do número de alunos com cegueira matriculados nas redes foi de 129% em escolas comuns e de 84% no caso dos estudantes com baixa visão. Em 2004, 2,2 mil cegos estudavam em colégios regulares e, em 2009, 5 mil. No mesmo período, o número de alunos com baixa visão nas classes comuns saltou de 30,8 mil para 56,6 mil.
Ao passo que a matrícula de deficientes visuais cresce nas escolas regulares, diminui nas especiais. Para o Ministério da Educação e as secretarias de ensino, isso é uma vitória. Para os pais, ainda uma preocupação. Os especialistas defendem que a inclusão de estudantes deficientes em escolas comuns acaba com o preconceito e ajuda essas crianças e esses adolescentes a se tornarem mais independentes e autônomos. A família teme a falta de atendimento adequado e a discriminação.
“Escola se prepara de acordo com aluno que ela recebe, com ou sem deficiência. É a presença desse aluno que impulsiona a transformação dos sistemas de ensino. Essa ideia de que pessoas com deficiência precisam de acompanhamento especializado sempre não é correta. Classe especializada é segregação”, afirma Martinha.
Para a diretora do MEC, as famílias dos deficientes se sentem inseguras porque, em geral, superprotegem os filhos. “A família é muito importante e contribui muito para que pessoa se desenvolva mais ou se infantilize. Ela tem de perceber isso e ter noção de que a escola não é ideal para todo mundo, mas ninguém deixa de ir a escola por causa disso. É nas dificuldades e nos conflitos que crescemos”, analisa.
Ivaneide Batista Dias, 33 anos, vive esse dilema atualmente. O filho caçula, Wesley Lima Dias, 7 anos, perdeu a visão há dois anos por causa de um tumor nos olhos. No Centro de Ensino Especial para Deficientes Visuais (CEEDV) em Brasília, ele recebeu atendimento para saber como lidar com a nova condição: se locomover, ler em Braille, desenvolver ainda mais os outros sentidos.
O avanço de Wesley foi tão rápido que ele será encaminhado para uma escola inclusiva em 2011. A mãe está preocupada. Teme que professores e colegas não saibam lidar com ele e o deixem “de lado”. No centro de apoio, a coordenadora, pedagogos e psicólogos contam que o trabalho com a família é bem mais intenso do que com as crianças atendidas por lá. “Eles precisam de mais apoio para entender e aceitar a vida dos filhos”, afirma Susana Silva Carvalho, supervisora pedagógica.
Os atendimentos no centro são feitos com bebês a partir do nascimento. A proposta é identificar problemas de visão o mais rapidamente possível e iniciar as atividades de estímulo, mobilidade, orientação e ensino com eficiência. Grande parte dos bebês atendidos até os três anos no programa chamado de Precoce deixa o centro em seguida. “Muitos vão direto para escolas inclusivas. Outros fazem educação infantil aqui”, conta Susana.
Crianças mais velhas também, em muitos casos, continuam tendo atendimento especializado no local em horário contrário ao das aulas. “Aulas de música, natação e datilografia, por exemplo, fazem parte das atividades oferecidas”, exemplifica. Adultos e adolescentes também são encaminhados ao local para aprender a se locomover sozinhos e desempenhar tarefas domésticas. “Hoje, essa é uma escola de passagem. Eles passam aqui o tempo suficiente para viver uma vida normal lá fora”, afirma Susana. O centro auxilia também as escolas inclusivas que vão receber os alunos.
Felizes com a diferença
Josiane dos Santos, 32 anos, conta que não teve problemas com a adaptação da filha à Escola Classe 410 Sul, em Brasília, onde foi estudar depois de sair do centro especial. Sara dos Santos Ferreira, 13 anos, tem baixa visão e uma doença nos ossos, a osteopetrose. Em geral, crianças com essa doença não vivem muito – acabam desenvolvendo outras doenças – mas Sara se mantém um desafio para medicina.
“Os médicos se surpreendem com ela. Eles me diziam que ela não viveria mais de 10 anos. Por causa disso, estou sempre com ela. Venho para a escola, fico de olho, mas nunca tivemos problemas aqui. Sara adora a escola, a professora e os colegas”, garante. A filha, que está no 4º ano do fundamental, confirma. “Gosto muito dessa escola. Nunca tive medo de vir para cá. Todos me receberam bem”, afirma.
A professora dela, Rosa Cristina da Gama, conta que nunca havia dado aulas para um deficiente visual antes. “Senti muito medo no começo, porque não tenho cursos nessa área. Mas tem sido uma experiência gratificante e não é difícil. É só ter disposição para repensar as aulas, deixar de usar só quadro e giz e buscar novas formas de ensinar”, pondera.
As amigas Carolina Dias Lima Souza, 11 anos, e Thaiz dos Anjos Ataídes, 12 anos, que são cegas, estão adaptadas na nova escola, em Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal. Alunas do 5º ano, elas admitem que gostam mais do novo colégio do que do centro especial. “Lá a gente tem mais amigos”, resume Thaiz. A mãe de Carolina, Eunice Dias, concorda que a adaptação foi fácil. Mas reclama das condições. “Ainda falta muito. Faltam rampas, salas de aulas adaptadas e professores com formação específica“, diz.
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