Revista Escola Pública
Gestores dos programas de saúde nas escolas passam a investir em prevenção e na compreensão da educação integral; professores e comunidade têm participação fundamental
Gabriel Jareta
Fernando Pires |
Diante de um universo de dezenas de milhões de crianças e adolescentes matriculados nas redes públicas brasileiras, cabe à escola um papel preponderante na promoção da vida saudável desses alunos, em grande parte oriundos de famílias de baixa renda e com acesso restrito a serviços de saúde. Mas o que é promover a educação para a saúde no ambiente escolar? Em alguns casos, a tônica é identificar precocemente problemas como miopia ou surdez, em outros é equilibrar as orientações a respeito de educação alimentar de maneira a abordar tanto a desnutrição quanto a obesidade, mas às vezes é simplesmente mostrar a uma criança, pela primeira vez, como se usa um banheiro, como nas "escolas das águas" do Pantanal sul-matogrossense.
A visão atual da promoção da saúde e da prevenção a doenças nos ambientes escolares aponta que as atenções devem estar voltadas, principalmente, para uma educação integral, em que os temas de saúde perpassem não só as várias disciplinas, mas também envolva professores, funcionários, comunidade e poder público. Na prática, porém, o modelo de "correr atrás do prejuízo" continua em vigor em grande parte das redes. "Os programas, de maneira geral, têm uma visão muito pontual da doença. Se há um surto de dengue, vão tratar a dengue, se é leptospirose, fazem uma campanha. A questão é que grande parte das doenças (que atingem as crianças em idade escolar) são evitáveis", afirma Maria Cecília Focesi Pelicioni, professora livre-docente do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Para a pesquisadora, a ideia de um ambiente saudável na escola engloba desde questões que envolvem meio ambiente, saneamento e merenda escolar até a preparação de professores e funcionários para lidar com as necessidades de saúde dos alunos. "A educação em saúde ainda traz um ranço antipático, de imposição, uma visão higienista e de limpeza. A nova visão é aquela que visa fazer com que o indivíduo assuma o controle de sua saúde, que mostre às crianças o valor de ser saudável", defende. Um exemplo prosaico da pesquisadora diz respeito ao piolho. Até bem pouco tempo atrás, a orientação de muitas redes era mandar de volta para casa as crianças que tivessem as cabeças com piolho, o que, na opinião dela, é uma atitude contrária a essa compreensão. "Criança ter piolho é uma coisa natural e a família não pode faltar ao trabalho por conta disso. A escola tem de ser um ambiente favorável ao estabelecimento de relações positivas", diz.
De fato, atualmente algumas experiências em redes públicas municipais e estaduais mostram que atribuir à educação em saúde um caráter preventivo e de maior amplitude traz mais efeitos positivos do que nortear o planejamento pelo combate pontual a doenças sazonais ou males que afetam os estudantes em determinados períodos ou faixa etária. O próprio programa do governo federal para lidar com esse tema, o Programa Saúde na Escola (PSE), foi instituído com orientação voltada para "promover a formação integral dos estudantes da rede pública de Educação Básica por meio de ações de prevenção, promoção e atenção à saúde" (leia mais na página 28).
De acordo com a coordenadora executiva do PSE no Ministério da Educação (MEC), Clarisse Filiatre Silva, o objetivo principal do programa é enfrentar as "situações de vulnerabilidade", com prioridade para a Educação Básica. Pelo planejamento, o programa começou a ser implantado em 2008 na base da pirâmide dos municípios de acordo com o Ideb, e deve atingir em torno de 23,5 milhões de crianças até 2011. As ações envolvem desde a avaliação das condições de saúde dos alunos até a capacitação de professores para lidar com temas como prevenção ao uso de drogas e orientações alimentares. "O governo não quer substituir a formação, mas contribuir para ela. A temática da saúde deve abranger todo o projeto político-pedagógico, com o envolvimento da comunidade e das famílias", afirma Clarisse.
Comunidade envolvida
Fora do âmbito do PSE, a experiência tem comprovado que os municípios que envolvem a comunidade nos projetos de saúde na rede escolar parecem ter resultados mais positivos. Em Anápolis (GO), cidade com cerca de 300 mil habitantes e 30 mil alunos na rede municipal, o dia de avaliação de saúde nas escolas é um dia especial, segundo a secretária de municipal de educação, Virgínia Maria Pereira de Melo. "Geralmente a avaliação é feita num sábado de manhã, com a presença dos pais, com pipoca, cama elástica. Vira um dia de festa", conta. A triagem envolve a avaliação geral da saúde, exames de acuidade oftalmológica e auditiva e exames clínicos. A ideia é que cada aluno tenha seu prontuário de avaliação desde o ingresso na rede - quando é necessário, os casos mais complexos são encaminhados para os postos de saúde ou para tratamento especializado.
As principais ocorrências verificadas se referem a problemas auditivos, deficiências visuais e verminose. "Há uma porcentagem significativa de alunos com problemas de surdez. A triagem oftalmológica também diagnosticou casos bastante sérios, como catarata", diz. Num primeiro grupo de 3 mil crianças avaliadas em 2009, 90 delas precisavam usar óculos, mas a incidência aumenta quando são incluídos na conta os alunos da educação especial e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Mais do que o diagnóstico precoce de algumas doenças, a atenção à saúde na escola também pode evitar casos mais dramáticos, como o de uma mãe que só na triagem descobriu que seu filho, matriculado no 2º ano do ensino fundamental, era cego de um olho. "A mãe saiu daqui chorando, mesmo porque ela brigava muito com o menino, dizia que era desatento, vivia esbarrando nas coisas, se machucando", conta a secretária.
Em Natal (RN), o projeto "Caravana da Saúde Escolar" também busca o envolvimento da comunidade para promover ações de prevenção. O projeto surgiu em 2007, motivado pelo baixo desempenho dos alunos da rede escolar da cidade nas avaliações. Ao investigar as causas dos seguidos resultados negativos, os técnicos da secretaria detectaram grande quantidade de problemas relacionados à deficiência alimentar e à falta de avaliação auditiva e visual, junto com o tratamento necessário. "Não havia condições para oferecer serviços, como dar um par de óculos ou um aparelho auditivo", conta Ana Tânia Lopes Sampaio, secretária de saúde do município.
Diferenças regionais
Entre as ações para tentar reverter esse quadro, a prefeitura implantou em setembro de 2009 o projeto da Caravana, que consiste hoje em duas unidades móveis com equipes multiprofissionais para fazer as triagens entre os alunos e capacitar professores para identificar alguns quadros de doenças comuns. Após passar pela triagem, os casos que precisam de atenção são encaminhados para a unidade de saúde da região. Em parceria com uma ONG, a prefeitura também promove a identificação precoce do câncer infantil. Com o objetivo de atender a cerca de 50 mil estudantes na cidade, a secretária prevê que o resultado da Caravana se refletirá em avanço na avaliação da rede escolar e, em paralelo, economia nos recursos da pasta da saúde. "Há muito enfoque na doença, o que proporciona maior demanda na recuperação. Nossa meta é reverter com a atenção básica.
Procuramos fazer uma promoção da saúde de forma articulada, intersetorial, para melhorar a qualidade de vida como um todo", diz Ana Tânia.
As características sociais e geográficas de municípios e estados também têm influência na hora de planejar as ações de educação para a saúde. Grandes centros urbanos, como São Paulo, ou regiões com maior índice de desenvolvimento econômico, como o Estado de Santa Catarina, demandam maior atenção a questões de saúde do ponto de vista social. Preocupações de atenção básica, relacionadas à higiene e saneamento básico, perdem espaço para problemas relacionados a sexualidade, drogas lícitas e ilícitas e violência. Por outro lado, municípios como Corumbá (MS), localizado em uma área que envolve o Pantanal sul-matogrossense e com uma grande extensão de fronteira, as atenções são voltadas para questões de saúde básica.
De acordo com o secretário de educação de Corumbá, Hélio de Lima, ex-secretário estadual de educação do Mato Grosso do Sul de 2002 a 2006, o município procura integrar o planejamento de ações periódicas, como a prevenção à dengue, à execução de projetos mais amplos e contínuos, como o trabalho com os "escovódromos" para promover a saúde bucal. As ações básicas se estendem também às "escolas da águas", responsáveis por mais de 2 mil alunos da educação infantil ao 9º ano do ensino fundamental, localizadas em fazendas pantaneiras e próximas a áreas alagadas - algumas delas com alojamentos que abrigam os alunos que permanecem lá durante a semana e voltam para casa nos finais de semana. Segundo o secretário, em algumas dessas escolas é preciso ensinar aos alunos noções básicas de higiene, como passar a fazer as necessidades em banheiros, e não na água, como é costume em algumas casas. "O Pantanal é cíclico, depende da água, então nossas atenções devem estar voltadas para essas particularidades também", diz.
Com cerca de 100 mil habitantes e 18 mil alunos nas escolas do município, Corumbá enfrenta outro desafio nos últimos anos: lidar com a quantidade cada vez maior de alunos bolivianos na rede municipal. De acordo com o secretário, embora muitas famílias da vizinha Bolívia já utilizem o sistema de saúde da cidade, ainda não é possível identificar os reais motivos que levam as crianças estrangeiras à rede escolar do município: se é apenas o ensino, o uniforme ou a alimentação. "A questão é que temos de fazer esse trabalho de base tanto com o brasileiro quanto com o boliviano, mas sobre eles quase não temos informação. A criança entra num carro depois da escola e vai pra Bolívia, não temos controle", relata Lima.
Papel do professor
Além do envolvimento da comunidade, outra questão clara a respeito da promoção da saúde na escola é o papel fundamental do professor nesse processo - não só como orientador, mas também na detecção de doenças ou riscos e encaminhamento correto. Em Santa Catarina, por exemplo, a política de promoção de saúde e cultura de paz estabelecida pelo governo estadual está inserida nos conteúdos curriculares e faz parte do cotidiano dos professores. "Esse trabalho deve ser feito de forma interdisciplinar e sistemática, de modo que a criança e o adolescente se tornem sujeitos do processo. Mas as disciplinas com mais afinidade, como ciências e biologia, tomam a frente", afirma Rosimari Koch Martins, coordenadora do Núcleo de Educação e Prevenção da Secretaria de Educação de Santa Catarina.
Segundo ela, os professores passam por um trabalho de capacitação para lidar com as questões básicas de saúde e ter atenções voltadas para uma tríade em especial: sexualidade, drogas e violência. Com o investimento em orientação do educador, ela conta que já está recebendo relatos "muito positivos" de algumas unidades escolares. "As dificuldades existem porque o professor ainda não está apto para enfrentar essas questões, geralmente por conta de uma deficiência de formação. Estamos tentando nos articular ao ensino superior para formar professores mais aptos a lidar com esses temas", diz.
Em Natal, antes de as caravanas da saúde chegarem às escolas, os professores recebem manuais de orientação e são capacitados para entender algumas queixas ou interpretar sinais que nem sempre as crianças relatam aos pais ou aos médicos. "Na nossa rede o professor também tem uma função de agente de saúde, esperamos que seja capaz de identificar sinais de violência, de doenças mentais ou problemas com relação a drogas", afirma a secretária Ana Tânia. Na capital potiguar, as campanhas de prevenção também são direcionadas aos professores, com a distribuição de material informativo e avaliação de problemas comuns aos educadores, como os que atingem as cordas vocais.
Para Maria Cecília Pelicioni, da USP, os professores devem estar atentos a pequenos detalhes, como alguma mudança de comportamento, o modo de andar ou a postura da criança - e, a partir daí, relatar e encaminhar o problema já com observações mais consistentes. "Também fui professora, sei a quantidade de coisas que se tem pra fazer, mas a relação que o professor tem com a criança, ninguém mais tem. É comum o professor passar mais tempo com a criança do que os próprios pais, e eles devem estar treinados para perceber certas coisas que nem os pais percebem", afirma. Na opinião dela, essa "relação favorável" do professor com a criança deve se estender aos outros funcionários da escola. "A preocupação com o ambiente saudável deve abranger desde o porteiro, que acolhe as famílias na entrada, até a direção, que é quem deve passar essa visão aos professores", ressalta.
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