Acreditava o poeta e filósofo Friedrich Schiller (1759-1805) que não
chegaria à verdade quem não se atrevesse a ultrapassar a realidade
imediata. E nós a ultrapassamos quando usamos a imaginação, esse
complexo poder humano que ao mesmo tempo assusta e fascina. No mundo
escolar, particularmente, é elogiada e temida, vista como aliada e, em
determinadas horas, como inimiga. Não há arte, ciência ou filosofia sem
imaginação, mas quantos de nós, professores, ficamos confusos quando os
alunos imaginativos quebram nossos paradigmas e... paradogmas!
Educar
a imaginação é fundamental para que a "louca da casa", como foi tratada
por algumas correntes de pensamento, nos salve de uma loucura ainda
mais perigosa - a loucura dos que usam a razão para destruir o que há de
belo e bom na vida humana.
A leitura dos contos surreais do
escritor francês Pierre Gripari (1925-1990), incluídos na categoria de
literatura infanto-juvenil, demonstram como é preciso ter sensibilidade e
bom-senso apurados para mergulhar na imaginação, encontrando formas de
abordar o que há de indecifrável na existência. E, nesse momento, nos
damos conta de que os leitores mais necessitados de literatura infantil
são justamente os adultos.
Bruxas e beldadesHá
muitos seres estranhos neste mundo. Não precisamos acreditar em
extraterrestres. O nosso planeta já está habitado (e jamais
habituado...) por fadas, bruxas, gigantes, demônios, ogros... e pessoas
humanas. Na realidade, somos nós essas bruxas e esses demônios. Só não
temos suficiente clareza sobre isso. Falta-nos coragem para contemplar a
dura realidade...
Os contos de Gripari são corajosos a esse
ponto. Trazem-nos para o mundo real pelo caminho de uma narrativa que
não obedece à sensatez de praxe. Numa de suas histórias, "A Catarina Sem
nome", Gripari desenha uma bruxa horrível e terrível que adotou uma
menina bonita e adorável. A madrasta vive maltratando a garota, que
obedece com absoluta submissão. Mas por que a bruxa a adotou? Que
sentimentos a motivaram? A explicação do autor é simultaneamente absurda
e esclarecedora:
Aposto que agora vocês vão me
perguntar por que aquela bruxa
feia, má, ruim e horrível tinha
pego uma criatura tão bonita,
gentil, deliciosa e agradável
para criar... Por quê?Pois
vou dizer. Porque ela esperava
conseguir a média. Vocês
sabem que na escola, para
passar de ano, uma nota alta
em matemática pode acabar
compensando uma nota baixa
em história, por exemplo...
A sra. Sem nome achava que
com o tempo poderia pegar
um pouco das qualidades
de Catarina, ao passo que a
menina, em troca, poderia
pegar alguns de seus defeitos.
Sem
receio de receber acusações racionais, como a de praticar uma espécie
de maquiavelismo, a imaginação radicaliza os contrastes para criticar à
vontade algo que, para alguns, é lógico e defensável. Rebelde, destemida
e atrevida, a imaginação critica a média!
A imaginação não faz
média, não esconde a realidade. Se para um aluno a história é feia e
cruel, e a matemática é bela e deliciosa, por que ocultar esse fato? Um
fato revelador deve ser exposto com toda a vivacidade da ficção. Fazer a
média, em nome de um embuste, vai, neste caso hipotético, destruir a
beleza da matemática e a feiura da história. Que todos entendamos uma
coisa - não é possível salvar o que há de bom e belo no mundo se não
aceitarmos o que nele existe de desagradável.
O exame da imaginaçãoEm
outro conto, "O diabinho bom", Gripari brinca de novo com o bem e o
mal. O pequeno diabo está disposto a ser bom, mas tem de encarar um
longo processo de aprendizado. E enfrentar alguns paradoxos. Não pode,
por exemplo, seguir o santo mandamento da obediência aos pais. Seus pais
querem que ele seja mau, e seu desejo é ser bom. Para isso... terá de
desobedecê-los!
Finalmente chega às portas do céu, e é submetido a
uma bateria de provas. A de matemática, sob a responsabilidade da
Virgem Maria, é a mais díficil.
Numa sala de aula pequena, com
uma carteira só, a Rainha (e professora) do Céu pede ao aluno endiabrado
que descubra (eis a única e decisiva questão do exame) qual o número de
três algarismos, divisível por três, que tem olhos azuis e uma perna
mais curta do que a outra.
O risco de ser reprovado e voltar para
o inferno é grande. Mais do que uma prova em que tentasse falar
teologicamente sobre a Santíssima Trindade (grande tentação!), o
capetinha devia brincar com as imagens...
Depois de rabiscar várias possibilidades, deixa sua mente voar em torno do número 189:
[...] o 189 tinha uma barriga,
uma cabeça e duas pernas. A
cabeça era a bolinha de cima
do 8 e a barriga era a bolinha
de baixo. O 1 e o 9 eram as
duas pernas, e as duas eram
de tamanhos diferentes. A
perninha do 9 passava para
baixo da linha, mas o 1 ficava
inteirinho para cima da linha.
Então o diabinho cortou o
papel no meio e, na metade
onde não tinha nada escrito,
desenhou um lindo 189. Fez o
8 um pouco mais acima do 1
e do 9 e desenhou dois olhos
azuis na bolinha de cima do 8.
Depois ele ainda fez uma boquinha vermelha, um narizinho e duas orelhas.
Recriando
o número, o diabinho bom, que se tornará um anjo vermelho com um par de
chifres, ultrapassa a lógica matemática. Desenhar em vez de calcular
foi o inesperado caminho da salvação. Ao transgredir o exato, o diabinho
entrou no céu, onde tudo ganha nova personalidade, como escreve
Gripari: "seres humanos, animais, objetos... e até algarismos!"
Querer
aprender é acreditar num outro mundo, no qual seja possível reinventar
as regras, no qual os animais e objetos sejam eternos, no qual os
algarismos caminhem sobre as nuvens.
Nesse outro mundo, educamos a imaginação. Exercitamos a nossa
razão imaginativa, louca e lúcida. Esse outro mundo não precisa ser ilusório. Ele pode ser a escola mais próxima.
*
Gabriel Perissé (www.perisse.com.br) é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)
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