sábado, 12 de março de 2011

Sobre os sonhos da humanidade

FONTE: REVISTA EDUCAÇÃO - EDIÇÃO 166
Que seria de nós sem o socorro do que não existe?
 
No consultório do oftalmologista estava uma gravura com o corte anatômico do olho. Olhando para a gravura, o oftalmologista pensava ciência. Naquela noite ele foi encontrar com sua bem-amada. Olhando apaixonado para os seus olhos e esquecido da gravura, falou como poeta: "Teus olhos, mar profundo...".

No consultório ele jamais falaria assim. Falaria como cientista. Mas os olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cada olho vê certo no mundo a que pertence.

O filósofo Ludwig Wittgenstein criou a expressão "jogos de linguagem" para descrever o que fazemos ao falar. As piadas são jogos de palavras cujo objetivo é produzir o riso.

Imagine, entretanto, que um homem, em meio aos risos dos outros, faça a pergunta "Mas isso que você contou aconteceu mesmo?". Aí você olha e pensa: "Coitado! Ele não sabe que nesse jogo não há verdades. Só há coisas engraçadas".

 A ciência também é um jogo de palavras. É o jogo da verdade, falar o mundo como ele é. A poesia é outro jogo de palavras. Usar palavras para brincar com os sonhos, porque, no final das contas,  os sonhos são a substância de que somos feitos. Como disse Miguel de Unamuno:

Recuerda, pues, o sueña tú, alma mía
 - la fantasía es tu sustancia eterna -
lo que no fue;
con tus figuraciones hazte fuerte,
que eso es vivir, y lo demás es muerte.

É no mundo encantado de sonhos que nascem as fantasias religiosas. As religiões são sonhos da alma humana. Poemas. O que nunca aconteceu. Não se pode perguntar de um poema se ele aconteceu mesmo... Jesus se movia em meio às coisas que não existiam e as transformava em parábolas, que são estórias que nunca aconteceram. E não obstante a sua não existência, as parábolas têm o poder de nos fazer ver o que nunca havíamos visto antes. O que não é, o que nunca existiu, o que é sonho e poesia tem poder para mudar o mundo. "Que seria de nós sem o socorro do que não existe?" - perguntava Paul Valéry. Leio os poemas da Criação. Nada me ensinam sobre o início do universo e o nascimento do homem. Sobre isso falam os cientistas. Mas eles me fazem sentir amoravelmente ligado a este mundo maravilhoso em que vivo e que minha vocação é ser seu jardineiro... Dois jeitos de ver, dois mundos...

Aí vieram os burocratas da religião e expulsaram os poetas como hereges. E os poemas passaram a ser interpretados literalmente. E, com isso, o que era belo ficou ridículo. Todo poema interpretado é, literalmente, ridículo. Toda religião que pretenda ter conhecimento científico sobre o mundo é ridícula.

Eu concordaria com o ensino das religiões nas escolas se elas fossem ensinadas da mesma forma como se ensina poesia. Mas tomar os poemas da Criação como teoria científica  é confundir as coisas, é olhar para os olhos da amada e ver o corte anatômico do globo ocular. Eu concordaria, se os mestres fossem poetas e não acreditassem...

Rubem Alves Educador e escritor
rubem_alves@uol.com.br

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